O mundo está em convulsão. A pandemia de Covid-19, a guerra russa na Ucrânia e o aquecimento global estão a mudar a face do planeta que conhecemos e a tornar dolorosamente evidentes as dependências das sociedades humanas.
O conflito no Leste europeu demonstrou que as economias do continente estão fortemente alicerçadas nos combustíveis fósseis, especialmente o petróleo e o gás natural vindos da Rússia. Como se sabe, a União Europeia já se comprometeu a abandonar até 90% das importações de petróleo para o continente até 2023 e estipulou o investimento em energias renováveis como a pedra-angular da estratégia de autonomia energética do bloco dos 27, da concretização da transição energética e de um futuro livre de emissões de gases com efeito de estufa.
Quando olhamos para esse quadro dos dias que estão por vir, pensamos numa mobilidade movida a eletricidade: em carros elétricos a percorrer as ruas das nossas cidades, num turbilhão de zumbidos, e em centros urbanos mais limpos e respiráveis. E essa visão aproximou-se ainda mais de uma realidade na iminência da concretização quando o Conselho Europeu chegou a um acordo para proibir vendas de carros a combustão a partir de 2035.
Contudo, outro problema se levanta: apesar de a produção de eletricidade na Europa a partir de fontes renováveis ter vindo a aumentar nos últimos anos, ainda está, em grande medida, dependente do gás natural. E parte mais do que significativa desse gás flui a partir da Rússia, país com o qual a UE está em plena guerra económica, pelo que um corte do fornecimento para o bloco europeu não está fora de questão, e alguns países, como a Alemanha, já têm planos para reativar centrais elétricas a carvão para evitarem possíveis “apagões”, se Moscovo decidir retaliar e “fechar a torneira” aos Estados ocidentais.
Com tudo isto a pintar um pano de fundo energético bastante negro, como é que podemos sequer considerar uma transição energética minimamente alcançável e uma mobilidade que nos permita garantir a proteção do planeta sem que as sociedades humanas tenham que se limitar a andar a pé ou de bicicleta? Haverá alternativas ambientalmente sustentáveis à mobilidade elétrica?
Ana Calhôa, Secretária-Geral da Associação de Bioenergia Avançada (ABA) responde: “Acredito verdadeiramente que sim”, pois os “biocombustíveis são a fonte renovável mais eficiente para a mobilidade sustentável”.
Os biocombustíveis “produzem energia renovável limpa líquida a partir de matéria-prima residual”, o que eu e o leitor poderíamos, sem grandes demoras, considerar “lixo” e que, de outra forma, acabaria em aterros. A maioria desses combustíveis é produzida a partir de óleos vegetais, como óleo de palma e de soja, entre outros.
Em entrevista à ‘Multinews’, a responsável da associação portuguesa explica que os biocombustíveis produzem menos 84%, ou até ainda menos, de gases com efeito de estufa do que os fósseis, e menos 67% do que os veículos elétricos convencionais, considerando a origem da eletricidade que os alimenta.
E existe ainda outra vantagem: a utilização de biocombustíveis não exige a aquisição de novos veículos nem o desenvolvimento de novas infraestruturas, pois podem ser utilizados nos motores de combustão tradicionais. De facto, os biocombustíveis já se encontram misturados no gasóleo e na gasolina que enchem os depósitos dos nossos carros.
Ana Calhôa diz-nos que, atualmente, o gasóleo já conta com 7% de biocombustíveis, “mas pode ir até aos 100%, e assim substituir todo o gasóleo”, e aponta a Finlândia e a Suécia como exemplos de países que já se movem, em larga medida, a biocombustível. Quanto à gasolina, esse valor é de 5%, mas poderá também ser ainda maior.
E em Portugal? Ana Calhôa revela-nos que “o mercado dos biocombustíveis se tem desenvolvido bastante” no nosso país e que “existem diversos projetos em desenvolvimento” e que “a possibilidade de transformar refinarias para a produção de biocombustíveis avançados está também a ser estudada”.
O Governo tem apoiado o crescimento da presença desses combustíveis sustentáveis em Portugal, “aumentando a meta das renováveis para 11% e criando, em 2021, uma sub-meta de 0,5% para os bios avançados”. Esses apoios têm aumentado “a confiança no desenvolvimento do setor da energia líquida sustentável” e “os players do setor continuam a reduzir a produção a partir de óleos virgens e a substituí-la, cada vez mais, por resíduos, como óleos alimentares usados e outras matérias-primas avançadas”. E um número crescente de empresas está a olhar com cada vez mais interesse para esse setor em ascensão, com “a intenção de abrir unidades produtivas, com recurso a tecnologia capaz de processar novos resíduos e acelerar a transição energética nos transportes em larga escala”.
Ana Calhôa afirma que “é precisamente desta nova indústria dos biocombustíveis avançados que se espera que venha o grande salto que acelera a transição energética nas estradas portuguesas, de modo definitivo”.
Em termos de incentivos, a responsável conta-nos que, em Portugal, existem a chamada dupla contagem – que está relacionada com a presença de biocombustíveis nos fósseis – e a isenção de impostos sobre biocombustíveis avançados e gases de origem renovável. Ainda assim, “acredito que é preciso e é possível fazer mais”, afiança Ana Calhôa, e diz que “são precisos mais incentivos governamentais”, à semelhança do que já acontece no setor da produção elétrica de fontes renováveis.
“Os biocombustíveis de resíduos e outros avançados são, atualmente, a única alternativa renovável que permite a Portugal alcançar as metas de descarbonização do setor energético”, sentencia a responsável da ABA. No entanto, diz que existem obstáculos ao desenvolvimento do setor em Portugal e apela a que as metas traçadas sejam mais ambiciosas.
Referindo-se ao Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), que estabelece o objetivo de incorporar 20% de energias renováveis no setor dos transportes até 2030, Ana Calhôa diz que esse deve ser visto como o mínimo, e que o Governo português deverá ir mais longe, com essa meta a prever um mínimo de 3,5% de presença dos bicombustíveis avançados.
“Acredito que estes obstáculos devem ser encarados como desafios para os quais podemos e devemos ajudar a dar resposta”, aponta a responsável.
Considerando o enorme potencial que encerram para ajudar a concretizar uma transição energética que não fique totalmente dependente da eletricidade, podem os biocombustíveis mesmo substituir a gasolina e o gasóleo? “Sem dúvida”, assevera Ana Calhôa, sem deixar margem para dúvidas, assegurando que podem ser a força-motriz da mobilidade a todos os níveis: em terra, no mar e no ar.
Do ponto de vista económico, o incentivo ao crescimento do mercado dos biocombustíveis “promove a economia circular, uma vez que resíduos, como óleos alimentares usados, molhos fora de prazo, borras de café e outros, que acabariam em aterros ou no oceano, são reutilizados e transformados em energia”, explica-nos. E acrescenta que, se Portugal aumentar o investimento no desenvolvimento desses combustíveis alternativos, o país conquistará uma maior autonomia no campo da energia, que no atual contexto de “pré-crise energética” seria altamente benéfico e de extrema importância. E esse não seria um grande esforço financeiro nem sobrecarregaria o erário público, considerando que “toda a infraestrutura, processo de logística e frota estão criados e são já utilizados”.
O hidrogénio tem sido apontado por muitos como uma alternativa mais segura e sustentável à mobilidade elétrica, e vários governos europeus já começaram a aplicar largas quantias a projetos nessa área. Contudo, “o hidrogénio é ainda uma solução pouco madura”, diz Ana Calhôa, “enquanto, por outro lado, os biocombustíveis são já uma solução desenvolvida e com provas dadas”.
A responsável acredita que “Portugal tem capacidade para liderar a transformação da mobilidade” e os biocombustíveis podem colocar o país na vanguarda da nova era energética europeia, e também na linha da frente da exportação desses produtos energéticos ambientalmente sustentáveis, traduzindo-se também num ganho de valor acrescentado bruto nacional”.
“Estou certa de que os biocombustíveis podem efetivamente ser o futuro da mobilidade e representar uma peça fundamental e imediata para a transição energética e descarbonização das várias economias e países do mundo”, garante-nos Ana Calhôa.
Ler Mais